Setúbal
Eis Túbal, cidade antiquíssima, erguida na margem esquerda da foz do Sado, o rio que teimosamente corre ao invés dos demais. Será por ser alentejano?! O avanço das areias obrigou os homens posteriormente à mudança para o lado de cá, criando um importantíssimo porto de mar e pólo industrial. Por entre as suas ruas estreitas e sinuosas como as de um burgo medieval, descobrimos a casa onde nasceu a 15 de Setembro de 1765 Manuel Maria Barbosa do Bocage (Rua Edmond Bartissol, nº 10 a 12, antiga Rua de São Domingos).
Abençoado pelos deuses com um grande talento para versejar, a negra vida obrigou-o a desperdiçá-lo em versos pagos para matar a fome que muitas vezes deve ter padecido. Mas quis a Ventura que em “mimos feminis” se fiasse, e assim pudesse legar à nossa literatura poemas inflamados do desejo de “mil deidades (digo, de moças mil)”, eivados alguns do mais letal dos venenos - o Ciúme. Temperamento romântico por excelência, foi na natureza que encontrou o melhor refúgio para os seus encontros (e desgostos) amorosos.
De cima destas penhas escabrosas
Que pouco a pouco as ondas têm minado,
Da Lua co’o reflexo prateado
Distingo de Marília as mãos formosas.
Ah! Que lindas que são, que melindrosas!
Sinto-me louco, sinto-me encantado.
Ah!, quando elas vos colhem lá no prado,
nem vós, lírios, brilhais, nem vós, ó rosas!
Deusas! Céus! Tudo o mais que tendes feito,
vendo tão belas mãos, me dá desgosto;
nada, onde elas estão, nada é perfeito.
Oh!, quem pudera uni-las ao meu rosto
Quem pudera apertá-las no meu peito
Dar-lhe mil beijos e expirar de gosto!
O Brasil, por onde andou, concedeu-lhe honras cimeiras ao oferecer à cidade que o viu nascer a sua estátua, colocada num pedestal na praça com o seu nome, sobranceiro à avenida que tem o nome de uma ilustre cantora lírica aqui nascida – Luísa Todi. Lá no alto, desfrutando o espectáculo do mundo, muito decerto se rirá da mesquinhez dos homens nos tempos que correm. O seu temperamento desbocado não perdoaria certamente o chiste improvisado.
Pela mão do poeta vamos ainda à Igreja se Santa Maria e à Casa do Corpo Santo, sede da Confraria dos Navegantes e Pescadores da Vila de Setúbal (1714)l, actual Museu do Barroco.
Arrábida
Serpenteada pelo rio, onde alegres golfinhos surgem a brincar, e pelo oceano, eis que se ergue a Serra da Arrábida, paisagem de beleza agreste, rica pela diversidade ecológica que nela habita. São 10.821 hectares debruçados sobre pequenas praias paradisíacas, como Galápagos e o Portinho da Arrábida, onde se situa
a lapa de Santa Margarida, a mais bela dádiva da natureza e no interior da qual se situa uma capela. Numa prega da serra esconde-se o convento da Arrábida, habitado por franciscanos até à extinção das ordens religiosas pelos liberais em 1834. Aqui viveu em recolhimento
Frei Agostinho da Cruz (1540-1619), contemporâneo de Camões, e irmão do poeta Diogo Bernardes. Desgostos amorosos fizeram-no recolher aos vinte anos na Ordem de S. Francisco e, numa recusa ao mundo vil e cruel, procurou isolar-se ainda mais nesta serra, onde muito embora vivesse em pobreza, era o mais rico dos homens. A natureza, a solidão, o amor a Deus e o gosto pelo estilo maneirista marcam a poesia deste eremita que aqui viveu durante 20 anos, graças a uma autorização especial, e cujas obras permaneceram praticamente inéditas até ao século XVIII.
O livre passarinho, que voava,
Cantando para o céu deixando a terra,
Da terra para o céu me encaminhava.
Cuidei que se esquecesse nesta Serra
A dura imiga minha natureza;
Mas donde quer que vou lá me faz guerra.
Oh! quem vira naquela fortaleza
Rodeada de fogo de amor puro,
Daquele amor divino esta alma acesa!
Quão firme, e quão quieto, e quão seguro
No campo se pusera em desafio!
E quão brando sentira o ferro duro!
Mas se agora de mim me não confio,
Se fujo, se me escondo, se me temo,
É porque sinto fraco o peito frio